Trinta e nove leões caminhavam pela savana. Um deles se opôs ao mestre da caravana: "Estás pegando o caminho errado".
"Quem de vós concordeis?", perguntou o mestre, de juba negra. Trinte e oito leões levantaram as suas peludas patas aos céus estrelados.
"Quem de vós direis que este quem vos fala deveria ser retirado de seu posto de mestre?", perguntou o mestre. Nove leões levantaram suas patas peludas para o céu.
"Continuei-vos vossa caminhada!", rugiu o mestre.
Meia savana explorada depois, os leões, com calos nos dedos e alguns já fracos, não podendo andar, estavam contrariados. Porém, seu mestre não lhes repetiu a pergunta ou abriu votação.
Durante a noite, Grande, o leão que opôs ao mestre, cortou a garganta deste enquanto todos dormiam.
No dia seguinte, os leões alvoroçados, se interpuseram. "Quem cortou a garganta de Karma, nosso mestre?" perguntou o próprio Grande.
"Só pode ter sido Ária!" apontou Tronco-Torto, com o dedo.
"Pois eu digo que deve ter sido Tronco-Torto! Quem mete o dedo na cara dos próprios amigos sem provas ou sequer pistas? Definharei ao lado de Karma à seguir caminho com este cretino!"
"Então te dás como culpada, Ária?" perguntou Grande.
"Dou minha vida ao lado de Karma a seguir sem saber para onde vou, pois ele, apenas ele, tinha conhecimento sobre o caminho!", rugiu Ária. "Quem cortou-lhe a garganta não tinha lealdade, respeito ou ideia do que estava fazendo! Estaremos perdidos neste mundo, e jamais encontraremos a Terra Prometida de Karma!"
"Pois então teu corpo e o dele serão queimados um por sobre o outro para que seja paga a dívida cruel que foi seu assassinato!", sentenciou Grande. E assim sucedeu-se.
Por mais oito dias caminharam, sem ter para onde ir. Grande seguia o nascer do sol todos os dias, por mais que tinha a impressão de que o Sol estava nascendo no lugar errado. No amanhecer do nono dia, foi encontrado o corpo de Pata-de-Veludo devorado por dentes afiados.
"Desta vez, nosso traidor esfomeado entregou a sua imagem. Tronco-Torto! Desconfio de suas intenções para com nosso grupo!", disse Grande. Tronco-Torto encolheu-se para dentro do chão, rodeado pelos dentes de Grande, que o rondava.
"Juro que não fiz nada, ó, Mestre de nossas andanças! Juro que não fui eu!"
Chama Cinzenta rugiu. "Traidor! Covarde!"
E assim os leões se alvoroçavam.
"Pata-de-Veludo tinha uma juba maior que a sua, Tronco-Torto. Matou-o por inveja?", perguntou Grande.
"A juba de Pata-de-Veludo era maior do que a de Karma", disse Chama Cinzenta.
Grande subitamente parou de rondar Tronco-Torto. "E com certeza você notou que após Karma morrer a única juba maior entre nós seria a de Pata-de-Veludo, exceto se contarmos as suas madeixas, Chama Cinzenta?"
"Minha juba sempre foi muito bem cuidada. Não arriscaria sujá-la de sangue, Grande!", reclamou ele, de peito estufado.
"Chama Cinzenta matou Pata-de-Veludo por inveja!", ganiu Tronco-Torto.
Grande se ergueu em duas patas deixando por debaixo da sombra o rosto horrorizado de Chama Cinzenta. Com os olhos arregalados, o leão mais belo que restara implorou: "Não faça isso, Grande! Estamos todos famintos, poderia ser qualquer um!"
E a patada deferida deslocou a jugular de Chama Cinzenta de uma só vez.
No dia seguinte, os leões estavam exaustos. Famintos. Um deles passara mal, e este era Ossos Largos, o mais miúdo dos leões. Grande ordenou que Tronco-Torto carregasse seu corpo, e ele o fez, de muita má vontade.
Na outra manhã, o corpo de Ossos Largos foi encontrado sem partes da carne e sem nenhuma vida. Desta vez, Grande deferiu um golpe certeiro em Tronco-Torto antes que este houvesse dito sequer uma palavra.
Grande e sua caravana continuaram a andar. Em pouco tempo, alguns leões passaram a morrer de fome, e Grande ordenou que suas carnes fossem devoradas para que não acontecesse aquilo novamente.
Restavam vinte e sete leões. Numa noite com o céu cheio de estrelas, Grande olhou para cima e perguntou para elas: "O que devo fazer? Esta caminhada sem sentido não dará em lugar algum. Todos os meus esforços para guiar este bando infeliz se mostram cada dia mais vãos..."
E então, Grande avistou as estrelas brilharem três pontos que formavam uma seta. Daquele dia em diante, ele riscaria no chão todo o caminho traçado pelos leões para que sempre seguissem naquela direção.
Dias depois, Grande amanheceu morto. Sua garganta havia sido cortada. Perdidos, os leões se voltaram ao único deles que tinha inteligência suficiente para julgar o que acontecera. Este era o Escorpião. Ele dissera que Grande jamais soube para onde todos estavam andando, e que o único caminho certo a se seguir era o de Karma. Assim que Karma morrera, então, os leões estiveram o tempo inteiro perdidos. Ele disse que não interessava quem havia assassinado Grande, pois este havia cortado a garganta de Karma, devorado Pata-de-Veludo e conspirado ao lado de Tronco-Torto o tempo inteiro para que parecessem inocentes. Quando Ossos Largos tornou-se um empecilho, Grande resolveu livrar-se dos dois ao mesmo tempo, seu servo imundo e o corpo sem serventia. Escorpião sentenciou que aqueles que eram fiéis à Grande deveriam seguir seu caminho, que era apontado por três estrelas vermelhas que toda noite brilhavam no céu. Seguindo aquele caminho, encontrariam a redenção e a calmaria. Para aqueles que eram fiéis a Karma, o caminho correto seria aquele que eles quisessem seguir, independente de quem os seguisse e independente de quem seguiam.
Rugido-Potente se pôs a frente de Escorpião e lhe disse: "Você e suas palavras bem formadas, parceiro. Lhe darei um aviso: se mais um de nós amanhecer morto amanhã ou no dia que se seguir, a sua língua será cortada nem que seja a última coisa que eu faça. Seus encantos não irão funcionar novamente."
"Não estou encantando ninguém para que me siga. Estou dizendo que devem seguir a si mesmos. Que devem fazer aquilo que acham correto. Ninguém deve seguir ninguém encharcado de desconfiança e dúvida. Aquele que não encontrar a Terra Prometida por Karma não seria digno de entrar nela. E assim será até o fim de nossas existências."