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quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A vida é cruel

Desde que havia nascido, Victor sentia que algo o esperava no futuro. Ele sonhava desde sua infância em ser um cantor, na emoção de estar em cima do palco, com as pessoas se divertindo por causa das músicas e batidas que ele havia criado para elas. Um sentimento puro e recíproco de amor entre ele e a massa.

Mas o tempo era cruel, e enquanto crescia Victor percebeu que a massa não existia. Cada célula integrante das multidões que compunham uma plateia eram um universo complexo. Ele não podia ter o amor da massa, apenas o calor.

Mas Victor também era um humanitário em seu interior. Ele não sonhava apenas com a adoração alheia, mas também em fazer algo com suas riquezas provenientes da fama para tornar o mundo um lugar melhor.

Certa vez o pai de Victor notou que seu pequeno estava observando cabisbaixo um homem dormindo no chão frio, na rua da grande metrópole. Ele se encolhia entre as pernas de sua mãe sem saber o que fazer. O pai então lhe estendeu uma cédula de dinheiro, e disse, "entrega pra ele".

Mas o mundo era cruel. Victor não foi capaz de arrancar de si mesmo a vontade de fazer o bem a outro, sobrepondo sua segurança pessoal entre as pernas de sua mãe, e viu o próprio pai fazer aquilo por ele. Envergonhado, mas não menos triste, ele chorou para sua mãe revelando suas vontades de fazer do mundo um lugar melhor quando crescesse, e que não queria que outro fizesse por ele de forma alguma.

Mas as lembranças são cruéis, e ninguém além dele se lembraria da maioria dos seus sonhos. E muitos outros desejariam que ele os esquecesse.

Mas Victor era cruel, e não deixaria de sonhar por mais que os outros tentassem lhe impelir a realidade goela abaixo.

Mas a vida era cruel. Victor acabou por ter seu sonho estocado dentro de seu peito junto com diversos outros sentimentos confusos em sua adolescência. Futilidades, paixões, estudo e projeções de carreira nada relacionados com o seu sonho inicial. Victor se sentia tão sozinho por não ser conhecido que acabou se introvertendo. Teve poucas e rasas amizades, se distanciou dos pais, perdeu o dom de se expressar com palavras, e se encheu de ressentimentos e mágoas que sequer ele tinha conhecimento.

Mas os sonhos são cruéis. Mesmo após terminar a escola, e apesar de ter tentado de tudo para sobreviver sem perseguir seus sonhos, Victor se sentia vazio. Mesmo que sua vida mudasse, ele talvez nem sequer fosse capaz de encarar a plateia. Se encarasse, nunca soube se cantava bem. Se adquirisse todo o dinheiro que pudesse, como ele poderia salvar as pessoas, se é quando perdem seus sonhos de vista que ficam infelizes? E nem todo dinheiro do mundo poderia dar isso de volta para elas.

Victor havia afundado em questionamentos existenciais. O que outrora parecia tão simples, um palco e uma plateia, era agora a diferença entre o Céu e o Inferno. Victor tentou a faculdade, um emprego comum e até mesmo a ociosidade, a desistência e a religião. Mas nada o fazia ver sentido em continuar tentando viver afastado dos seus sonhos impossíveis. E apesar de esse ser o grande motivo de toda a sua tristeza, também era o que o mantinha de pé para continuar.

E então, o que é que Victor tinha para perder? Absolutamente nada. Ele só precisava lembrar dos seus sonhos e persegui-los. Poderia não ser fácil como pensara, mas nada diferente lhe traria felicidade.

Mas a felicidade é cruel. Mesmo que Victor decidisse por seus sonhos, eles eram muito fora de sua realidade. Victor tentou se munir de coisas quais não possuía, amizades, uma relação saudável com os pais, abrir caminhos para andar, e, é claro, treinar suas habilidades como humanitário e cantor.

Mas o talento era cruel. Por mais que Victor se esforçasse, os anos se passavam e ele não saía do lugar.

Seus pais eram cruéis. Tendo lhes reconquistado, estava de volta ao ciclo do rato, queriam que ele deixasse seus sonhos de lado para ganhar estabilidade.

Sua amizade era cruel. Por mais que tivesse o dom de curar a dor das feridas, não as fazia sumir.

Victor se encontrava outra vez infeliz por ser incapaz de conciliar seus sonhos intrínsecos com a sua vida. Ele se sentia inútil por não conseguir esquecê-los ou deixá-los de lado, por não ser capaz de fazer nada diferente do que o que lhe encaminhasse para o sucesso absoluto (que ele já duvidava muito da existência).

Mas o esforço era cruel. As inúmeras feridas e remendos mumificaram o espírito jovem de Victor, e ele, como muitos, se via sem saída nenhuma, era um fracasso.

Qualquer Victor pode se convencer com a crueldade do universo, mas a desistência também é cruel. Pode parecer que ninguém vê que Victor precisa de ajuda, seja lá de qual for a vertente, mas o mais importante de tudo é que ele mesmo saiba disso. Isso não deixa seus sonhos de lado, mas mais do que isso, os põe em pauta, pois são quem ele é. Não importa se os sonhos ou o próprio Victor estejam quebrados, o importante é que ele procure uma forma de consertá-los, pois caso desista, talvez ninguém mais venha a ter os mesmos sonhos ou a coragem para realizá-los depois dele.

Tente.

Em nome de todos os Victors,
Nícolas Arths.

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